30.4.05

Rebentamento das águas

Sim, as nuvens podiam rebentar em baba e ranho. A acompanhar o torrencial do rebentamento dos sacos lacrimais cheios que nem bexiga a suster a corrosão da paciência e do autocontrolo. E às barragens também podia dar vontade de, sincronizadas com o resto do concerto, rebentar em ondas. E as do mar podiam muito bem segui-las como modelo.

Isso, claro, se o meu índice de massa corporal fosse superior ao centro gravitacional da Terra, para que tudo fosse ao encontro da minha dor, já que tudo, a água porca, a terra cheia de cancro nos ovários e o ar tússico, vão constantemente de encontro à existência feliz que fico à espera que me procure. Talvez afogado, soterrado ou movido pelo vento. Mas nunca me hei-de lembrar que tenho músculos.

Ou então que as águas que rebentam sejam as predecessoras de mais um nascimento em já um numerozinho de mortes minhas. E que tu comeces a mexer os pulmões de vez. Já te deram a pancada nas costas há tempo suficiente, e esperam que chores.

P.S.: sim, os negritos itálicos têm significados opostos... consultem a gramática ;)

19.4.05

Atreyu

Acho que continuo à espera do cavalo branco. Que só precisava de vir e ficar. Pastar em relva cultivada na banheira e correr nos cenários das minhas fotografias. Nada de me levar para mundos imaginários desenhados a lápis pelas mãos das crianças. Nada de “Era uma vez…”, que por começar algures e acabar nunca, seria grande demais para enfiar numa época qualquer da minha calendarização pequenina de vida. Não. A realidade, aclarada ou enevoada pela sua presença, era bem capaz de me ser de sobra, sem que do demais me fartasse tão cedo.

Só que os cavalos brancos são do mesmo género dos unicórnios, e os unicórnios da espécie dos sonhos que esfolio da pele com desespero. Com tanto código condicional, tanto if que não consegui verificar, deixo a água levar a espuma, deixando-me só o corpo a que me agarrar, consistente. Mera e demasiadamente palpável.

11.4.05

Carriche

Percorri novamente a Calçada com os olhos, de autocarro. Nunca passaria a pé, e tendo passado não o voltaria a fazer. Ainda assim, depois de um ano e qualquer coisa a passar aqui, e agora com o astigmatismo sob controlo, não consegui perceber onde foi. Nem mancha de sangue nem pelourinho. Os carros deverão continuar a passar por cima e pelos lados, sem saber de nada. Talvez o motorista se lembre.

E a cara espasma, mais uma vez; outra, como cada uma das primeiras. Era tão mais fácil ser católico. Ou acreditar que me assombras. Ou fazer um filho e chamar-lhe reencarnação tua ao reconhecer nele traços do génio que te atribuíamos.

Mas não. Vivo a tua morte com ateísmo e sem superstição alguma, na realidade do sabor do óleo dos carros a apagarem traços inexistentes daquele X que não vejo, e não quero.

Choro. Deve ser do piano impresso a 0 e 1 em mp3.